ARTIGO do nosso sócio Luiz Walter Coelho Filho “Origem e coerência da relação jurídica imobiliária”.

Em cada recanto do Planeta, o território é organizado por certo conjunto de indivíduos a partir da divisão entre espaços exclusivos e não exclusivos. Essa ordem é natural na vida social e deu origem à dois conceitos jurídicos fundamentais: a propriedade (uso exclusivo) e o domínio público ou comum (uso afetado e compartilhado). Não há superioridade entre as duas classes de usos. O importante é respeitar a finalidade e a função do imóvel e eliminar os desvios de finalidade e disfunções no uso que ocorrem com frequência.

O uso comum do imóvel nasce com a pesca, a caça e a coleta dos povos primitivos; evolui para os pastos compartilhados destinados à criação de animais; e adquire maturidade no terreiro ou praças das aldeias, vilas e cidades. O uso exclusivo do imóvel evoluiu da moradia da família na palhoça comum para a casa com cômodos exclusivos; e da plantação compartilhada para a roça exclusiva na qual a família obtém o sustento e troca o produto excedente.

Quem cria gado, pode compartilhar pasto, disputá-lo e talvez destrui-lo. Quem planta tem mais dificuldade para o uso comum da terra, terá que lançar as sementes em terrenos exclusivos e com muito trabalho vigiar e cuidar da sua cultura. O extrativismo pode ser algo comum; a criação de animais também admite o pasto comum, mas a agricultura é caprichosa: exige quase sempre a exclusividade da terra e de alguma forma o trabalho árduo do seu benfeitor contra pragas, animais e demais invasores.

O mito de Caim e Abel talvez seja o melhor exemplo dessa arcaica divisão entre imóvel comum e imóvel exclusivo.

Caim “mudou aquela inocente maneira de viver de que se usava no princípio, inventou os pesos e as medidas e substituiu a franqueza e a sinceridade, tanto mais louváveis e simples, pela astúcia e engano”. Essas palavras foram escritas por Flavio Josefoii, no século I AC. Caim representa, em certa medida, os sumérios. Povo que vivia em cidades, praticava o comércio, desenvolveu a agricultura, e, em consequência, de alguma forma ajudou a criar a propriedade. Sobre esse tema, o texto é contundente: “Caim foi “o primeiro que pós limites, para se dividir as propriedades e que construiu uma cidade”.

O mito de Caim e Abel representa o encontro em certo território de duas culturas distintas: de um lado, agricultores, e do outro lado, pastores. Filhos que são de Adão e Eva, uma cultura oprimiu e agiu sobre a outra modificando-a ou até mesmo destruindo-a. O que restou foi a visão do oprimido: “Caim, ao contrário, que por primeiro trabalhou a terra, era muito mau. Só buscava seu proveito e seu próprio interesse; sua horrível impiedade levou-o ao excesso do furor, a ponto de matar seu próprio irmão”. Curiosamente, a civilização de Caim é a que domina hoje: cidades, comércio, trabalho e propriedade.

A ordem de divisão do território em espaços exclusivos e não exclusivos e a sinergia entre ambos é a regra no mundo moderno. As residências modernas são assim organizadas. Quartos são espaços exclusivos dos moradores; cozinha e sala são espaços comuns. Nos condomínios, os apartamentos são espaços exclusivos; os elevadores e a portaria são espaços comuns. No território político da nação, casas, apartamentos, fazendas, sítios, indústrias são espaços exclusivos; praças, praias, estradas são espaços de uso não exclusivo.

A ordem de divisão dos espaços é estabelecida a partir de dimensões do uso individual (família), dos grupos (associação ou condomínio), das cidades e dos estados. Esse fato permite compor certa estrutura lógica determinada pela dualidade da finalidade: uso exclusivo ou uso comum.

No plano da origem, imóveis exclusivos são desmembrados de imóveis não exclusivos. O ato de desmembramento exige algum grau de poder e pacto que reconheça os efeitos dessa criação.

O uso exclusivo do imóvel é uma especialização social e jurídica do uso não exclusivo. A propriedade é filha emancipada do imóvel comunal. A casa própria é sonho individual que se impõe sobre a moradia coletiva.

Essa conclusão tem como inspiração a vida natural que compartilha espaços comuns e delimita territórios para cada grupo. O território brasileiro em fase anterior aos portugueses era dividido entre grupos indígenas segundo o critério da conquista e da guerra.

Os Tupinambás escolhiam o “sítio alto e desabafados dos ventos” e com água por perto no qual demarcavam o espaço da taba na qual erguiam as malocas, as cercas e organizavam as suas roças, escreveu Gabriel Soares de Souza, no ano de 1586.

O espaço exclusivo era muito limitado. As malocas não eram divididas em cômodos, as famílias se arrumavam em cantos, com seus pertences e alfaias dispostos nos jiraus, distribuídas com certa ordem. Assim viviam. As roças eram abertas e preparadas cabendo aos homens roçar os matos, queimar e limpar a terra. As mulheres plantavam o mantimento e faziam a colheita.

Quando os recursos do local se esgotavam com redução da caça ou empobrecimento do solo, os Tupinambás migravam em busca de novas terras e novas guerras.

Os Tupinambás pertenciam à grande nação Tupi, povos que conquistaram o grande litoral brasileiro e boa parte das margens dos grandes rios, expulsando e empurrando povos tapuias para as terras interiores.

A moradia e meio de subsistência dos Tupinambás na Bahia no Século XVI não é muito diferente da moradia coletiva do Yanomami, no Estado do Amazonas, no Brasil do Século XXI.

Quando os portugueses desembarcaram na Costa do Brasil, o poder do Soberano tratou de criar por desmembramento das vastidões de terra áreas de uso exclusivo fixando colonos e índios no território. A soberania transformou tabas em aldeias e povos tupis e tapuias em agricultores; aos colonos concedeu cartas de sesmaria; e alguns poucos nobres receberam títulos de capitania fazendo nascer ordem jurídica onde antes só havia costumes. A soberania foi consolidada a partir da propriedade!

Parece claro que a criação de imóveis de uso exclusivo depende da existência de poder soberano que assegure ordem de direitos e deveres sobre as terras. Em última instância, a propriedade é alicerce do poder soberano consolidado.

A especialização do uso exclusivo também pode ser compreendida como parte do processo de evolução da Sociedade. Cada indivíduo persegue ou busca arduamente ao longo da vida o melhor lugar para viver. A casa própria é o sonho de muitos indivíduos por traduzir exatamente essa noção de espaço próprio, ambiente de conforto, paz, segurança e sossego. O abrigo coletivo, em contrapartida, é o exemplo imaginário do abandono, ainda que nem sempre corresponda à realidade.

A perfeição do sistema imobiliário consiste na coerência entre os usos (exclusivo ou não exclusivo), o respeito às finalidades de cada uso e ao controle dos desvios de finalidade e disfunções. A titularidade pública ou privada é uma questão de fidelidade e adequação à finalidade. A coerência do sistema é que modela a sua eficiência.

Isso está genericamente escrito na Constituição Federal. A norma declara que é “garantido o direito de propriedade” e que essa “atenderá a sua função social”. As pessoas podem ter espaços exclusivos e tais espaços devem ser aplicados ou utilizados (função) em finalidades socialmente corretas.

A reflexão sobre usos, finalidades e desvios é importante porque permite a gestão ou regulação do sistema imobiliário eliminando-se os desvios de finalidade e as disfunções de uso. Esse raciocínio não tem lado e aplica-se ao Direito Público ou Privado.

O Terreno de marinhaiii é um exemplo interessante de desvio de finalidade e disfunção de uso com dano sistêmico à ordem imobiliária do Brasil na perspectiva desenvolvida nesse artigo.

Trata-se de tipo legal de propriedade pública (bens dominicais). Recai aproximadamente sobre 466 mil imóveisiv no Brasil e representa 83% do patrimônio imobiliário da União. Esse tipo legal incorre em desvio ou perda de finalidade e disfunções de uso.

No âmbito finalístico, dois pontos chamam a atenção.

Primeiro. Não cabe à União a atividade de exploração imobiliária em áreas que comportem uso exclusivo. Parece óbvio que a União não é não deve atuar como imobiliária. Esse número gigantesco explica o gracejo de alguns ao qualificarem a União como a “maior imobiliária do mundo”.

Segundo. Terreno de marinha servia para proteger o acesso público às praias. Hoje, existe o conceito legal de praiavi como bem de uso comum que é mais eficiente e ambientalmente correto. Existe sobreposição entre os conceitos legais de terreno de marinha e praia. A adequação normativa racional impõe a eliminação do primeiro que não tem mais finalidade quando sobreposto à área da praia.

No âmbito das disfunções de uso, dois outros pontos comportam reflexão.

Primeiro. A demarcação de terreno de marinha cria milhares de conflitos e abusos dirigidos contra os proprietários lindeiros.

A União tem o poder exclusivo de demarcar a linha de preamar média de 1831 (LPM). Ao obter essa linha, lança em seguida a largura de 33 metros e obtém a segunda linha intitulada “LTM – Limites dos Terrenos de marinha”. Esse procedimento é lento, sujeito à muitas revisões e conflitos, e não termina nunca. Transcorridos 190 anos da criação da Lei (1831) que fixou o padrão técnico da linha, apenas 23% da costa brasileira está demarcada!

Segundo. A dissociação na titularidade sobre as áreas é péssimo para a Sociedade. O terreno de marinha na parte que comporta uso exclusivo cinde a propriedade em dois títulos e cria, em regra, regime precário de ocupação, de natureza pessoal, em parte de imóveis que são regulados como propriedade (direito real). Isso é péssimo para a Sociedade pela desordem, custos e burocracia que cria. Algo que só se justifica pela filosofia senhorial que está por trás das normas que regulam a exploração do terreno de marinha.

Esse breve exemplo demonstra que os tipos legais que envolvem relações jurídicas imobiliárias (propriedade ou domínio público ou comum) devem ser examinados sempre cotejando a coerência do uso, finalidade e função. Esse método deve ser rigoroso; tem aptidão para revelar as ineficiências que exigem revisão e correção e alcança qualquer tipo legal de propriedade (uso exclusivo) ou domínio (uso comum), sem tabus.

__________________________________________________________

– As definições estão deduzidas no artigo do Autor intitulado: “A Relação Jurídica Imobiliária”. https://www.migalhas.com.br/depeso/359041/a-relacao-juridica-imobiliaria

– Flavio Josefo (37 d.C. – 100 d.C) escreveu, entre outros, um livro importante: Antiguidades Judaicas. Nasceu em Jerusalém, no seio de uma família de sacerdotes judaicos, recebendo sólida formação na Torá. O livro Antiguidades Judaicas reproduz os livros do Antigo Testamento, inclusive o Gênesis, com diversas interpolações e explicações, o que permite compreensão mais ampla e profunda do texto bíblico.

– Terreno de marinha é composto por parte exclusiva (comporta propriedade) e parte não exclusiva (praia). A praia não pode ser objeto de propriedade. Esse fato induz os órgãos federais a subir a linha de preamar para coincidi-la com o início da vegetação de restinga ou limite externo da praia.

– NUNES, André Luís Pereira. A Secretaria do patrimônio da União e a regulamentação da faixa de Segurança na costa brasileira. Trabalho de conclusão de Curso de Especialização em Gestão pública. Escola Nacional de Administração Pública. Brasília – DF, Novembro de 2014, página 9. https://repositorio.enap.gov.br/handle/1/1953#:~:text=na%20costa%20brasileira-,A%20Secretaria%20do%20Patrim%C3%B4nio%20da%20Uni%C3%A3o%20e%20a%20regulamenta%C3%A7%C3%A3o,de%20seguran%C3%A7a%20na%20costa%20brasileira&text=O%20estudo%20discorre%20sobre%20a%C3%A7%C3%B5es,Uni%C3%A3o%2C%20frente%20%C3%A0s%20aliena%C3%A7%C3%B5es%20decorrentes.

– https://ogfigovernance.com/2019/09/01/maior-imobiliaria-do-mundo-governo-vai-tentar-vender-quase-4-mil-imoveis/

– Lei 7.661/1988. Art. 10. As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidas por legislação específica.

§ 1º. Não será permitida a urbanização ou qualquer forma de utilização do solo na Zona Costeira que impeça ou dificulte o acesso assegurado no caput deste artigo.

§ 2º. A regulamentação desta lei determinará as características e as modalidades de acesso que garantam o uso público das praias e do mar.

§ 3º. Entende-se por praia a área coberta e descoberta periodicamente pelas águas, acrescida da faixa subseqüente de material detrítico, tal como areias, cascalhos, seixos e pedregulhos, até o limite onde se inicie a vegetação natural, ou, em sua ausência, onde comece um outro ecossistema.

– Plano Nacional de Caracterização do Patrimônio da União. 2017. SPU. https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/patrimonio-da-uniao/arquivos-1/2017/171214_pnc_edicao.pdf

FONTE: https://www.migalhas.com.br/depeso/384228/origem-e-coerencia-da-relacao-juridica-imobiliaria