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Tratamento diferenciado para ME e EPP como instrumento de desenvolvimento nacional sustentável

4 de setembro de 2017

Por força da regra prevista no art. 37, XXI, da Constituição Federal, a contratação de bens, produtos e serviços entre a Administração Pública e terceiros necessita, em regra, ser precedida de procedimento licitatório. Todos os órgãos da administração direta e entidades da administração indireta (fundos especiais, autarquias, fundações públicas, empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios) têm o dever de licitar.

O objetivo primordial de qualquer licitação pública é atender a uma necessidade administrativa por meio do fornecimento de um determinado produto ou da contratação de um dado serviço, isto é, através da contratação de uma solução adequada à necessidade demonstrada. Para alcançar essa finalidade, é necessário encontrar a opção que se revele a mais vantajosa para a Administração Pública, dentre todas as possíveis. A licitação é, então, o instrumento adequado a esse desiderato.

Contudo, a satisfação da necessidade administrativa não é a única finalidade do processo licitatório. Conforme a atual redação do artigo 3º da Lei nº 8.666/93, destina-se a licitação a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Deve ser privilegiado o tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte, na forma da lei (art. 3º, § 14, e art. 5º-A).

O processo de contratação pública deve ser visto como um instrumento de intervenção estatal que busca produzir resultados mais amplos, promovendo a realização dos valores prestigiados pela Constituição Federal.

Nesse sentido, destacam-se os artigos 3º, II; 146, III, d e parágrafo único; 170, VI e IX; 174, § 1º; e 179, todos da Constituição Federal de 1988, que tratam, entre outros temas, do desenvolvimento nacional sustentável e do tratamento jurídico diferenciado e favorecido destinado às microempresas e empresas de pequeno porte.

Demonstração desse intuito intervencionista do Estado está também na Exposição de Motivos à MP nº 495/2010, que introduziu modificações no art. 3º da Lei nº 8.666/93, em que é destacada a relevância do poder de compra governamental como instrumento de promoção do mercado interno, considerando-se o potencial de demanda de bens e serviços domésticos do setor público, o correlato efeito multiplicador sobre o nível de atividade, a geração de emprego e renda e, por conseguinte, o desenvolvimento do país.

De acordo com Marçal Justen Filho, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável tem por fim determinar que a contratação pública fosse concebida como um instrumento interventivo estatal para produzir resultados mais amplos do que o simples aprovisionamento de bens e serviços necessários à satisfação dos entes estatais. A vantagem a ser buscada, ensina o autor, adquire novos contornos e a licitação passa a ser orientada de forma a buscar-se a proposta mais vantajosa também sob o aspecto da promoção ao desenvolvimento nacional sustentável.

No tocante ao montante gasto pelo Poder Público com compras e contratações, segundo dados disponibilizados no sítio eletrônico do Ministério do Meio Ambiente, o governo brasileiro despende, anualmente, mais de 600 bilhões de reais com a aquisição de bens e contratações de serviços, o que corresponde a cerca de 15% do Produto Interno Bruto nacional, demonstrando a relevância socioeconômica das contratações públicas e sua capacidade de afetar e mesmo influir na atividade econômica do país.

O Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte (Lei Complementar nº 123, de 14 de Dezembro de 2006) tem o intuito, entre outros, de promover o desenvolvimento e ampliar a atuação dos pequenos negócios nas compras governamentais. Preconiza, no seu artigo 47, que toda a Administração Pública (direta e indireta) deve realizar licitações atribuindo benefícios às microempresas e empresas de pequeno porte.

O recente Decreto nº 8.538/2015 regulamenta os artigos 42 a 45, e 47 a 49, da LC 123/2006 (revogando o Decreto nº 6.204/2007) e amplia a possibilidade de utilização dos benefícios, por parte de licitantes, com os objetivos de promover o desenvolvimento econômico e social no âmbito local e regional, ampliar a eficiência das políticas públicas e incentivar a inovação tecnológica.

Os benefícios previstos no Estatuto da ME/EPP e no novo Decreto são:

1.   Não exigência de apresentação de balanço patrimonial do último exercício social, em licitações para o fornecimento de bens para pronta entrega ou para a locação de materiais;

2.   A comprovação de regularidade fiscal das microempresas e empresas de pequeno porte somente será exigida para efeito de contratação, e não como condição para participação na licitação, assegurado prazo de cinco dias úteis, prorrogável por igual período, para a regularização da documentação;

3.   Preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte, no caso de empate, entendendo-se com empate as ofertas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte que sejam iguais ou até 10% superiores ao menor preço ou, na modalidade de pregão, que sejam iguais ou até 5% superiores ao menor preço;

4.   Exclusividade de participação de microempresas e empresas de pequeno porte nos itens ou lotes de licitação cujo valor seja de até R$ 80.000,00, obrigatoriamente;

5.   Possibilidade de se exigir dos licitantes a subcontratação de microempresas ou empresas de pequeno porte (podendo os empenhos e pagamentos do órgão ou entidade da administração pública ser destinados diretamente às microempresas e empresas de pequeno porte subcontratadas), sob pena de rescisão contratual, sem prejuízo das sanções legais;

6.   Reserva de cota de até 25% do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte, nas aquisições de bens de natureza divisível, obrigatoriamente.

Ressalva o Tribunal de contas da União que a referida cota de 25% do objeto da contratação apenas poderá ser instituída quando:

a)   Existir regulamentação específica na esfera legislativa para o ente no qual se insere o órgão ou entidade contratante;

b)  For expressamente prevista no ato convocatório;

c)   For vantajosa para a Administração e não representar prejuízo para o conjunto do objeto a ser contratado;

d)  Houver, no mínimo, três fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados no local ou na região e com capacidade para cumprir as exigências estabelecidas no edital;

e)   Não exceder o valor licitado a 25% do total realizado em cada exercício;

f)   Não se enquadrar nos casos de dispensa e inexigibilidade de licitação previstos nos artigos 24 e 25 da Lei nº 8.666/1993 (excetuando-se as dispensas tratadas pelos incisos I e II do art. 24 da mesma Lei, nas quais a compra deverá ser feita preferencialmente de microempresas e empresas de pequeno porte).

Acerca da obrigatoriedade no tratamento diferenciado e favorecido às micro e pequenas empresas, tem se manifestado reiteradamente o TCU:

Os privilégios concedidos às microempresas e empresas de pequeno porte pelos arts. 44 e 45 da Lei Complementar nº 123/2006 independem da existência de previsão editalícia. (Acórdão 2144/2007 Plenário).

Os privilégios concedidos às microempresas e empresas de pequeno porte por força dos arts. 42 e 43 da Lei Complementar nº 123/2006 independem da existência de previsão editalícia, sendo de observância obrigatória pela Administração, quando se deparar com situação fática que se subsume aos comandos normativos em destaque (Acórdão 2505/2009 Plenário).

Aplique nas licitações que realizar as disposições dos arts. 44 e 45 da Lei Complementar nº 123/06 (Estatuto das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte) (Acórdão 4161/2009 Segunda Câmara).

O grau de efetividade dessas políticas públicas de tratamento diferenciado, favorecido e simplificado para microempresas e empresas de pequeno porte, ou seja, de fomento aos pequenos negócios, como instrumento de desenvolvimento nacional sustentável é constatado em números, por instituições como o SEBREAE, o IBGE, e o próprio Governo Federal, entre outros, entretanto os dados obtidos ainda são esparsos, não há uma compilação desses valores e índices.

A fim de demonstrar o alcance e a penetração social e econômica de tais políticas e, portanto, o grau sucesso no atingimento de sua finalidade, colaciono em seguida alguns dados bastante relevantes relativos à participação na formação do PIB nacional e à geração de postos de trabalho:

1. A participação das micro e pequenas empresas no volume de gastos do Poder Público é hoje bastante expressiva. Já são 8,9 milhões de micro e pequenas empresas, que respondem por mais de um quarto do PIB brasileiro, um resultado que vem crescendo nos últimos anos. Em 1985, o IBGE calculou em 21% a participação dos pequenos negócios no PIB brasileiro. Em 2001, o percentual cresceu para 23,2% e, em 2011, atingiu 27%.

2. Em valores absolutos, a produção gerada pelas micro e pequenas empresas quadruplicou em dez anos, saltando de R$ 144 bilhões em 2001 para R$ 599 bilhões em 2011, em valores da época. As ME e EPP são hoje as principais geradoras de riqueza no comércio no Brasil, já que respondem por 53,4% do PIB deste setor. No PIB da indústria, a participação das micro e pequenas (22,5%) já se aproxima das médias empresas (24,5%). E no setor de serviços, mais de um terço da produção nacional (36,3%) têm origem nos pequenos negócios (dados extraídos de www.sebrae.com.br).

3. Entre janeiro e dezembro de 2014, as contratações públicas feitas com micro e pequenas empresas (MPE) movimentaram R$ 16,7 bilhões. Os dados, levantados a partir do Portal de Compras Governamentais revelam o domínio das MPE em compras de até R$ 80 mil. Nestes casos, o setor responde por 71,2 % das contratações feitas com órgãos públicos. A grande maioria, 92,41% do total dos contratos celebrados com as MPE em 2014, foram feitos por intermédio do pregão eletrônico. Apenas 7,59% foram feitos com dispensa e inexigibilidade de licitação (dados disponíveis em www.brasil.gov.br).

4. O impacto desse imenso volume de negócios se reflete na geração de empregos. Dados do CAGED demonstram que em janeiro de 2017 as micro e pequenas empresas expandiram seu quadro de funcionários em 27,3 mil pessoas, em fevereiro foram contratadas quase o dobro de pessoas do que em janeiro, e em junho registraram, pela terceira vez consecutiva, saldo positivo de empregos, gerando 35.769 novos postos de trabalho, 14,4% a mais que o registrado no mês anterior. No ano, acumularam 81,3 mil novas contratações, enquanto as médias e grandes empresas (MGE) fecharam 26,7 mil vagas. Nos seis primeiros meses deste ano, as MPE acumularam saldo positivo de 211,2 mil novos empregos, enquanto as MGE eliminaram 162,2 mil postos de trabalho. Os pequenos negócios têm sustentado a geração de empregos no país, sendo os principais responsáveis pelos saldos positivos totais registrados em quatro meses do primeiro semestre deste ano. Fonte: MTb/Caged. Elaboração: Sebrae/UGE (disponível em www.sebrae.com.br).

Contratações públicas sustentáveis são as que consideram critérios ambientais, econômicos e sociais em todos os estágios do processo de contratação, transformando o poder de compra governamental em instrumento de proteção ao meio ambiente e desenvolvimento econômico e social. O Tribunal de Contas da União corrobora essa atual concepção, afirmando que a nova finalidade fixada para a licitação representa novo propósito para o contrato administrativo. Este deixa de ser apenas instrumento para o atendimento da necessidade de um bem ou serviço, que motivou a realização da licitação, para constituir, também, instrumento da atividade de fomento estatal, voltado, dessa forma, não só para os interesses imediatos da Administração contratante como também para interesses mediatos, ligados às carências e ao desenvolvimento do setor privado (Acórdão nº 1.317/2013 – Plenário).

Segundo o art. 4º, inc. II e IV, do Decreto nº 7.746/2012, são diretrizes de sustentabilidade, entre outras, a preferência para materiais, tecnologias e matérias primas de origem local e a maior geração de empregos, preferencialmente com mão de obra local.

Importante salientar que não se está a dizer aqui que a finalidade precípua da licitação foi relegada a uma posição menos importante. Obter a melhor contratação para a Administração ainda é a principal meta a ser alcançada pelo administrador público.

Segundo lição de Marçal Justen Filho, se o resultado da licitação diferenciada conduzir a preços superiores aos usuais de mercado, caberá à Administração Pública promover a revogação da licitação. Nesse sentido, o TCU assevera que a licitação não deve perder seu objetivo principal, que é obter a proposta mais vantajosa à Administração, mediante ampla competitividade, a teor do art. 3º, caput, da Lei 8.666/1993 (Acórdão 1734/2009 – Plenário).

Outro ponto que tem gerado questionamentos, inclusive instando as Cortes Superiores à manifestação, é o possível conflito entre o tratamento favorecido dispensado às ME e EPP e o princípio da isonomia. Contudo, a posição que tem prevalecido é a de que não há afronta ao princípio, vez que não havia igualdade material na relação inicial. Ao contrário, por meio do tratamento favorecido às micro e pequenas empresas tem-se buscado possibilitar a estas concorrer de forma mais igualitária com as empresas maiores.

Jair Eduardo Santana e Edgar Guimarães alertam para a necessidade de se ater aos limites da necessidade de diferenciação, observando que o tratamento diferenciado, portanto, não deverá ir além do estritamente necessário para eliminar as diferenças entre pequenas e grandes empresas sob pena de afrontar o princípio da isonomia. José Anacleto Abduch Santos dispõe que ao instituir tratamento diferenciado e favorecido para as ME e EPP, a Lei Complementar não viola o princípio da isonomia porque parte da premissa de que não são elas iguais às empresas grandes. A premissa jurídica (e fática) de que as ME e as EPP não são iguais às grandes empresas torna possível conferir a elas tratamento desigual.

Conforme a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

A LC 123/2006, em consonância com as diretrizes traçadas pelos arts. 146, III, d e parágrafo único; 170, IX; e 179 da CF, visa à simplificação e à redução das obrigações dessas empresas, conferindo a elas um tratamento jurídico diferenciado, o qual guarda, ainda, perfeita consonância com os princípios da capacidade contributiva e da isonomia. Ausência de afronta ao princípio da isonomia tributária. (RE 627.543, rel. min. Dias Toffoli, j. 30-10-2013, P, DJE de 29-10-2014).

Não há ofensa ao princípio da isonomia tributária se a lei, por motivos extrafiscais, imprime tratamento desigual a microempresas e empresas de pequeno porte de capacidade contributiva distinta (…) [ADI 1.643, rel. min. Maurício Corrêa, j. 5-12-2003, P, DJ de 14-3-2003].

O fomento da micro e da pequena empresa foi elevado à condição de princípio constitucional, de modo a orientar todos os entes federados a conferir tratamento favorecido aos empreendedores que contam com menos recursos para fazer frente à concorrência. [ADI 4.033, rel. min. Joaquim Barbosa, j. 15-9-2010, P, DJE de 7-2-2011].

De igual toada, a jurisprudência do Tribunal de Contas da União:

 Além disso, no caso das microempresas e empresas de pequeno porte, o tratamento diferenciado resulta da própria situação de desigualdade dessas empresas em relação a outras que não têm a mesma natureza; por outras palavras, trata-se de tratar desigualmente os desiguais (Acórdão 1231/2008 Plenário).

Os benefícios concedidos pelo Estatuto das Micro e Pequenas Empresas (LC 123/2006 e suas modificações) podem ser regulamentados pelos municípios e estados. Ressalte-se que a regulamentação local deve estar em sintonia com a regulamentação geral.

O uso do poder de compra pelo município e/ou estado poderá permitir que:

•       O fluxo de negócios e a geração de renda se distribuam num contexto de mercado local ou regional;

•       Os incentivos à produção local ampliem a renda das famílias; e

•       Essa visão política propicie um ciclo virtuoso de desenvolvimento local, gerando aumento de receitas públicas que poderão reverter na melhoria dos serviços públicos e em programas de ações sociais.

Cabe, derradeiramente, destacar que não há incompatibilidade entre os decretos que regulamentam as margens de preferência para a aquisição de produtos manufaturados ou serviços de procedência nacional e o tratamento diferenciado e favorecido destinado às micro e pequenas empresas, os benefícios não são excludentes entre si.

Por todo o exposto neste breve trabalho, é possível constatarmos que a atual legislação permite a criação de condições para um processo de desenvolvimento nacional sustentável, pois a mesma comunidade que produz e vende para o mercado local ou regional também poderá consumir insumos e outros produtos do mesmo mercado local ou regional, gerando empregos e receitas, num círculo virtuoso que impulsiona a economia de maneira global.

Fonte: Jus.com.br