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O ‘caso MPT x churrascaria Fogo de Chão’: R$ 17 milhões por cumprir a lei

10 de março de 2021

Nesta semana chamou atenção a milionária condenação por dano moral coletivo da churrascaria Fogo de Chão, em decorrência de demissões em massa sem prévia negociação com o sindicato profissional, conforme divulgado pela mídia e no próprio site do Ministério Público do Trabalho.

O tema é recorrente nos debates doutrinários e vale, neste breve artigo científico, analisar o teor da decisão judicial para que possamos entender a razão de decidir e as circunstâncias fáticas que ensejaram a condenação, pois todas as sentenças possuem aptidão para se transformar em precedentes judiciais, o que obviamente nos leva a pensar no padrão de conduta a se adotar de um cidadão, mormente porque, no caso, há lei expressa autorizando o comportamento da empresa.

Conforme a sentença nos autos da Ação Civil Pública 0100413-12.2020.5.01.0052, a circunstância fática que ensejou a condenação foi a dispensa de pouco mais de cem empregados sem negociação prévia com o sindicato, logo no início da pandemia da Covid-19. Quanto ao fundamento jurídico, além de adotar as mesmas razões que já tinham sido expendidas em sede de tutela de urgência, a colega juíza elaborou mais alguns motivos para justificar não apenas a condenação em dano moral coletivo no valor de R$ 17 milhões, mas também a manutenção dos empregos dispensados. Nesses pontos, vale discriminar separadamente alguns dos fundamentos para a devida crítica, pois percebe-se que a forma de pensar da juíza sentenciante ainda é comum na magistratura trabalhista, logo não vai aí nenhuma crítica pessoal. A ideia é fazer uma catarse coletiva, eis que orgulhosamente integro os quadros da Justiça do Trabalho.

Primeiro, o seguinte parágrafo da decisão: “É necessário ter em mente que nenhuma norma legal pode ser interpretada sem o parâmetro constitucional”. Pronto, pensei, ali está estabelecido o gatilho para se justificar qualquer tipo de conclusão, independentemente do que está previsto pelo legislador. E logo na sequência confirmei minha intuição, dizendo a juíza:

“Portanto, não basta que o artigo 477-A da CLT disponha que ‘as dispensas imotivadas individuais, plúrimas ou coletivas equiparam-se para todos os fins, não havendo necessidade de autorização prévia de entidade sindical ou de celebração de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho para sua efetivação’.
Considerando-se que as dispensas coletivas superam o âmbito individual de um trabalhador, atingindo uma coletividade de empregados que, junto com suas famílias, perdem sua fonte de sobrevivência, estamos falando, sim, de um ato coletivo, inerente ao Direito coletivo do Trabalho e não apenas do Direito individual do Trabalho.
Sendo assim, a disposição do artigo 477-A da CLT agride diversos princípios constitucionais, tais como os da justiça social; da subordinação da propriedade à sua função social; da proporcionalidade; da valorização do trabalho e do emprego; e da centralidade da pessoa humana na ordem jurídica e na vida 
socioeconômica, além do princípio da dignidade da pessoa humana”.

Analisando, então, o fundamento da decisão, mais uma vez percebemos o grande problema do julgamento a partir de princípios para se superar o disposto pelo legislador. Soaria lindo se não fosse trágico, pois, ao prevalecer tal técnica de julgamento, nunca mais nenhum jurisdicionado pode se arvorar a viver em sociedade a partir do Direito positivado, já que qualquer lei pode ser considerada como “agressora” de diversos princípios constitucionais. Aliás, nem é preciso fazer essa festa principiológica para se fundamentar qualquer julgamento, basta invocar logo a dignidade da pessoa humana, o superprincípio constitucional que valida qualquer interpretação na Justiça do Trabalho.

Fico imaginando a pessoa que é condenada por uma decisão que usa desta “técnica”, seu dilema e sua reflexão por ser considerado como praticante de um ato ilícito pelo Poder Judiciário. Deve ser algo do tipo: mas a lei não permitia expressamente esta conduta? Por que estou sendo condenado se fiz exatamente o que o legislador autoriza?

Pior deve ser a tentativa do advogado do cliente condenado de explicar o motivo de sua assessoria não ter sido eficaz : “Então, fizemos o que a lei permite, aliás em artigo que não deixa qualquer margem de dúvida para sua interpretação, agora, nunca saberemos o que se passa na cabeça do juiz, que pode desconsiderar qualquer lei para julgar como bem entender”.

Mas o problema não para por aí. A decisão mencionada, após discorrer sobre a função social da empresa, justifica sua conclusão também no fato da empresa condenada ser “sólida, com lojas espalhadas no Brasil e no exterior”, reconhecendo que seus lucros caíram com a pandemia, “mas, certamente, tinha mais capital para administrar a crise do que cem famílias que, abruptamente, perderam sua fonte de renda e o importantíssimo benefício do plano de saúde…”.

O que me chamou a atenção nesse trecho da sentença foi a certeza fixada pelo juízo sem qualquer elemento que pudesse justificar sua assertiva, o que denota uma razão de decidir etérea, baseada na ideia preconcebida de que toda empresa sólida deve suportar o encargo social de manter empregados mesmo que a empresa não esteja mais funcionando ou esteja com suas atividades reduzidas ao extremo.

Não há lógica nessa premissa, não há nenhuma norma em nosso ordenamento jurídico que determine a manutenção de empregados pelo fato do empregador possuir mais condições financeiras do que os trabalhadores, não vivemos em um sistema comunista ou socialista que determine a repartição de riquezas com trabalhadores para além do que fixado na legislação específica. E mais: se a empresa estivesse sem capacidade econômica a decisão teria sido diferente? A necessidade ou não de negociação coletiva prévia para dispensa em massa depende da análise da condição financeira do empregador? Onde está previsto tal requisito?

Há mais. Na sequência quase ocorre uma reviravolta no julgamento, como uma cena de suspense num filme de terror, em que a vítima está conseguindo fugir do assassino, você chega a acreditar que vai dar certo, mas na próxima curva a tragédia anunciada se concretiza. Trata-se do reconhecimento, pela própria juíza, de que o empregador no caso concreto poderia ter de fato efetuado a dispensa em massa sem autorização do sindicato. Isso mesmo, consta lá da sentença: Com certeza, a reclamada não precisava de autorização sindical para dispensar seus empregados”.

O que acabou determinando, então, o julgamento? Está ali na próxima curva: “Mas, conforme fundamentos já analisados, precisava dialogar com o ente sindical, buscando uma saída menos injusta para os empregados, negociando algumas questões. Se tivesse aberto este canal, dificilmente, teria feito as rescisões com corte de direitos como o fez, inicialmente. Teria evitado tanto sofrimento para seus empregados”.

Aí está a premissa: a dispensa em massa não precisa de autorização sindical, mas é obrigatório dialogar com o sindicato antes. Novamente imagino a empresa condenada tentando entender o passivo trabalhista de R$ 17 milhões: então bastaria conversar com o sindicato dos trabalhadores? Nem precisaria da autorização do sindicato para a dispensa, somente um diálogo evitaria essa condenação milionária?

A sentença em análise, adotada como precedente, parece ter criado um novo requisito para validar as dispensa em massa, a terapia sindical. Se o empregador tivesse sentado no divã do sindicato e conversado com ele, não precisaria pagar a conta milionária que lhe foi imposta. Mais do que investir em assessoria jurídica, deve-se estar antenado para apostar todas as fichas na terapia. Antes e depois da sentença.

Para finalizar, vale notar o fundamento para se chegar ao montante de R$ 17 milhões a título de dano moral coletivo. Em sete linhas de dois parágrafos a decisão entendeu por não serem aplicáveis os parâmetros estabelecidos no artigo 223-G, §1º, da CLT porque “não atendem aos comandos constitucionais que preveem a reparação proporcional ao agravo” e literalmente arbitrou o valor já conhecido, reduzindo o pretendido pelo MPT, que era de R$ 70 milhões, já que se fixou a abrangência da ação apenas ao Rio de Janeiro, e não a todo o território nacional. Ufa, graças a Deus!

Enfim, sempre respeitando o direito de cada magistrado proferir suas decisões com autonomia e independência, a presente análise acadêmica revela, mais uma vez, os perigos das decisões voluntaristas lastreadas em princípios, como uma carta em branco na mão de cada juiz, que só precisa passar num concurso de provas e títulos para poder manipular todo o ordenamento jurídico conforme suas convicções pessoais.

Precisamos enfrentar seriamente esse tema, não podemos sobreviver em paz e harmonia se não soubermos as prescrições de conduta estabelecidas pelo sistema jurídico. Viver no Brasil passou a ser uma aventura jurídica, pois qualquer coisa se faça, mesmo com base na legislação em vigor, pode ser questionada perante o Poder Judiciário e o juiz pode decidir com bem entender.

Sou magistrado há quase 24 anos e hoje compreendo exatamente o sentimento do ex-ministro do STF Eros Grau na sua clássica obra que chega à décima edição, “Por que tenho medo dos juízes”. A se confirmarem julgamentos como o analisado neste artigo, a próxima edição da obra de Grau poderia evoluir seu título para: “Por que morro de medo dos juízes”.

Otavio Torres Calvet é juiz do Trabalho no TRT-RJ e mestre e Doutor em Direito pela PUC-SP.

Fonte: ConJur